terça-feira, 30 de novembro de 2010

Minha casa

Eram seis horas da manhã, e ela nem dormira. Esperava apreensiva a hora de ir embora. Não falara com ninguém nas últimas horas, mas podia sentir a agitação que vinha dos demais. O ambiente era toda alerta. Morava na ocupação havia 62 dias, mal dera tempo de conseguir um emprego fixo. A rotina não era fácil. Dormir em colchonetes no chão, carregar baldes de água para tomar banho. Mas ela tinha um teto. A segurança contra o frio, a união contra a fome. Ali ela era com mais 1,5 mil ocupantes. O prédio imponente com seus 20 andares era o templo da dignidade de quem só tinha vivido entre paredes de madeira fina. O barraco foi embora com as últimas chuvas. Depois de se arrumar de favor nas primeiras noites, a ocupação. Seu estômago doía amargo diante da ideia do que a esperava depois da chegada da polícia. Se conseguisse dormir, ao menos poderia ter mais um sonho numa noite protegida. Pequena, sabia que enfrentar os policiais não podia, nem acompanhada. Era a regra. E a regra dizia que, doesse a quem doer, era ela quem teria que dormir na rua amanhã, e faltar ao trabalho por ter que cuidar da sua sobrevivência imediata. Turbilhão. O prédio ainda cheio, depois vazio. Ela vazia. Devia valer muito pouco, menos que uma esquadria do antigo hotel que a abrigava. Onde estaria o dono daquele esqueleto de concreto? Dormia em paz? Ela não dormira. As pessoas, seus vizinhos durante os últimos dois meses, começavam a orientar a saída. Mas ela não tinha saída. Ali era o fim da linha. O desespero imobilizava suas pernas e ela gritava silenciosamente por socorro de dentro daquele corpo que não era nada no mundo, era sem espaço. Cabeça erguida era impossível. Sentia-se massacrada como uma folha de caderno que fosse arrancada, amassada indiferentemente e jogada no chão. Andou por inércia no meio da multidão de sem-direito. Era uma massa moldada pela opressão. A luz do dia do lado de fora a cegava levemente, trazendo aos poucos a imagem da rua.


(Uma homenagem às famílias desalojadas recentemente de ocupações na cidade de São Paulo e que reivindicam nas ruas uma solução da prefeitura http://migre.me/2CcEt)

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Um dia ruim


Ela saiu de casa pisando em vazio. Era pé vazio sobre chão vazio. Nada podia se somar naquele momento por simples falta de ser. E mesmo assim, algo pesava muito. Pesava a consciência do vazio, pensou ela. Porque isso sim tem uma massa, pesada e lenta, de gosto ruim que amarra a língua. Olhou em volta de repente com medo da ideia de que notassem o seu vazio... mas as pessoas não reparam, são alheias a ele. Além de sem conteúdo, ele é sem cor. Se os outros o vissem, pensou, ela o pintaria de um vermelho bem vivo, assim ele não pareceria tão raso. Pois pior que vazio, é ser feio e triste - distraiu-se ela, divagando. Como pode tanto tempo ter construído algo sem corpo nem conteúdo? Então ela só fez foi desconstruir? Nos seus sonhos de menina, achava que desconstruir dentro dessa ordem era justamente criar algo melhor, mas... que algo tem? Falta. Uma hora jogou o vazio no chão para ver se ao menos do peso se livrava. Só que tudo se compunha de novo em um só vazio e consciência de ser. Pesada, então, ela retomou seu caminhar, e a cada passo vinha uma lágrima, como um moinho que, numa lógica às avessas, do movimento criasse a água que lhe move, e esta escorresse em finas gotas pela face.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Encanto


Encantada. Acreditava que nascera por puro encanto, e hoje, em especial, sentia que também acordara por encantamento. E o encanto dizia: Viva! Seu corpo recebia alerta toda essa energia boa que vinha do fundo da terra, de milênios, dos tempos dos que já souberam como viver. Essa energia não tinha a menor finalidade. Consumia-se no próprio ato, transformando-se apenas em alegria de viver, sem ter para quê. Mas era tão rápido que nem tempo de perguntar dava mesmo. Se foi e o dia ainda era vivo. Os olhos perplexos por ver o cinza que restava, os braços caídos. Ela sabia que seu penar era justamente, sabendo que o encanto existia, ainda assim seguir. E apesar da beleza, ela vivia, fingindo uma serena ignorância.

terça-feira, 1 de junho de 2010

A pequena forasteira

Ela vivia num mundo de gigantes. Se o primeiro ato de um ser humano ao nascer é chorar, puxando para dentro de si o ar da vida, o dela fora esquivar-se, repelindo possíveis agressões. Era sua ação mais antiga, até instintiva, apesar de não acreditar num mundo todo mal. Protegia-se por precaução daqueles seres compridos dos quais quase que só via as pernas. Cuidava-se inocentemente ao sentir a hostilidade do universo, que nem entendia. Não nascera para entender. Fora jogada no mundo. E sem exemplos que lhe guiassem, pois se perdeu da família ainda pequena, quando nem se aguentava em pé sem vacilar. Agora nem vacilar podia. Sua vida era errante dentro de um espaço que não percebia tão limitado. Dormia onde dava, comia o que lhe davam. Não conhecia o amanhã. Seus segundos eram o nunca e o para sempre. Entristecia-se com aquela dureza toda, e fugia da chuva para não ficar gelada. Forasteira. Aí percebia que os lugares quentes lhe eram proibidos, mas logo esquecia. Sonhava com espaços mornos, vermelhos como carne suculenta de açougue. Amava os gigantes, eles tinham a chave de tudo. Com seu coração de cachorro, o amor que sentia era degustativo. Ela se esbaldaria, se pudesse. Guardava a esperança, na ponta do rabinho que as vezes agitava, de que um dia alguma mão gigante pousaria levemente sobre sua cabeça. Ela daria ao carinho até sua barriguinha pulguenta, como sinal de confiança. No seu instante sem tempo, ela seria feliz. E a felicidade sem tempo é a maior do mundo.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Caminhos

Todos os dias caminhava por aqueles mesmo espaços e ruas. Tinha horários certos para ir e para chegar, e para voltar, e para estar. Era confortável e agradável ter um rumo que ela escolhera. Apesar de que não lembrava exatamente porque escolhera. Deve ter sido porque um dia aconteceu e foi assim, até hoje. Andando nas linhas desenhadas previamente sob seus pés, um dia distraída ela de repente desconfiou que o memorado acaso poderia esconder a escolha de outro. Será que tinham escolhido por ela? De que forma? A ideia de repente a assustou. Porque se fosse ela, o que escolheria então? Seria por acaso diferente? E teria coragem de afirmar essa outra escolha? Os caminhos já estão tão simplesmente traçados que parece impossível arriscar outro jeito, ou pelo menos arriscado demais. Ela sentiu medo diante dessa provocação. Pois como poderia andar tão afirmativamente depois de ter pensado que talvez ela nem soubesse quem fosse para saber o que escolheria? E percebeu que na verdade não era sua vontade que a guiava, mas seu medo. Sim, porque se ela andava aqui, era porque tinha medo de andar por lá. Por medo um dia ela entrou correndo num prédio, parecia ridícula, mas a rua estava escura, as pessoas entenderiam. E quando a rua estava vazia, então, era pior, pois até seus fantasmas interiores a assombravam. Melhor ficar em casa, e quando saísse, atravessar na faixa de pedestres. Por precaução, era assídua consumidora de guias. O mundo é uma circunstância cruel com quem está vivo, pois só de viver você morre, e há outros à espreita para te abalar se não tiver cuidado e não souber seguir as regras. Prometera um dia que o único medo que não se permitiria sentir era o de uma criança. Essas crianças na rua, que chegam para te amedrontar como criaturas que vagam num mundo ruim paralelo. Se odiaria por isso. O que pode fazer uma criança? Mas um dia ela sentiu e não teve ódio de si mesma. A vida é assim. Por medo mesmo ela até esqueceu-se de quem era. Era arriscado demais seguir seu caminho. Mas que caminho? A cabeça doía diante da incapacidade de entender que tantos meandros tem essa vida, e agora se tornara pesado fazer o habitual. Que coisa mais chata viver na comodidade, pensou. Quase enlouquecia, porém, se pensasse muito nisso. Não imaginava quanto era perigoso andar distraída, pois num instante desses pode-se ser assolada por tais pensamentos soltos, coisa de gente doida. Ela não era doida, ela tinha um caminho. Mas hoje sabia que não era de seu eu, ainda indecifrável. Era o caminho de quem ela se condicionara a ser.

"À custa da intensidade [o burguês] consegue, pois, a subsistência e segurança; em lugar da posse de Deus cultiva a tranquilidade da consciência; em lugar do prazer, a satisfação; em lugar da liberdade, a comodidade; em lugar dos ardores mortais, uma temperatura agradável." Hermann Hesse - O Lobo da Estepe

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Redenção

Andava meio esquecida da vida, com o corpo vazio, frio, retirado de si. Seu peito frágil pouco aguentava ser de quem era, pois a função de manter o respirar mundano só resultava em suspirar sofregamente. Porque essas partes do corpo só são lembradas quando a dor vem. Senão, era como devia ser e está bom. A dor aprisionada era constante, às vezes imperceptível. Leve, assim até se podia ignorar, porém estava lá, implacável. Viver se tornara mais pesado e mais sensível com certeza, pois até a pele retraía em alerta ao mero toque de um sopro. As células pediam por essa reação dura e covarde, mesmo que fosse fuga, só importava se proteger do peso amargo e seco sem suor da dor contida. Manter-se. Mantinha-se. Levava. Mas o limiar entre a sua estabilidade e o desespero era tênue, e foi numa noite de lua escura escondida que de galope veio sem dó a constatação de que já não era mais a única na vida dele. Devia suspeitar que não fosse, mas para quê vir essa certeza eloquente e clara, que agora até cegava, pois a noite não era mais sombria, era clara como a luz forte do sol do meio-dia. A dor não vinha do peito e sim do estômago, forte e impiedosa, carregava consigo toda a angústia represada, por não caber mesmo, meu deus, como pudera guardar? De pé não podia seguir, sentou-se trêmula pedindo a mão de deus, que nem sabia quem fosse, mas era o único que permitiria vê-la tão vulnerável. Doía dentro do ventre, que estava cheio de choro para derramar, as lágrimas salgadas viriam das entranhas mesmo, como se fosse nascer um filho, aquele que ela renegara, porque se achava forte, porque não acreditava em morrer de amor. O peito estremecia com a perda do trabalho da angústia, agora que nem podia funcionar, sufocava, enjoava, e vinha um impulso forte de expulsar todo esse sentimento desumano pela garganta. Mas nem isso ela podia, não queria, decidira sofrer até o fim, até se acabar e acabar. Buscaria nas suas mais confusas sensações aquela que a libertaria desse mal. E lutara como se fosse pela vida mesmo. Destroçada pelo combate interior, ela só pedia que se fizesse a chuva, e que as flores nascessem amarelas para verdear a sala de estar, no dia seguinte da sua redenção.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Prelúdio

Sem avisar ele chega com seu peso de marcar até cimento seco. Um, dois, três, quatro... segue implacável e quente o relógio ditador. Abafado e quente. É pelo calor que não se consegue continuar na cama. Com o frio até se poderia ficar um pouco mais, mas não com o bafo amargo dessa rotina que chama ao som do despertador. O calor pesado te arranca sem dó para a realidade do mundo-dia-cronometrado de ritmo além do seu e das suas forças de ser... pois é quando se acorda que se decide quem se é de verdade. Antes era outra coisa, mas não que fosse mentira, pois dormindo também se vive muita coisa, mas não tem o relógio, não tem a linha do sempre seguir em frente. Você vai e volta, às vezes nunca chega, ou quem sabe já está, mas impreterivelmente, quando você precisa ser para não enlouquecer, você acorda. E se acorda ao som estridente do marca-tempo-companheiro-de-cabeceira é porque ainda não se estava preparada (ou preparado caso se considere que a generalização se dá no masculino) para o além-sonho. Não, não, não! É traumatizante ser arrancada todo dia assim dos seus delírios, que nem sempre são bons, mas são leves de leveza de sem-vir-a-ser o que seja, não importa. E cada dia ele é um, não carrega a culpa do tempo passado, essa herança surreal presente no fio fino da história, necessário para não se trocar os papéis e bagunçar tudo de vez. O calor não deixa, nem o ar, que carrega rápido o som abafado de despertar para o fundo dos ouvidos e estremece as entranhas te empurrando insuportavelmente para o chão! Pé no chão. E sente-se enfim que a massa do mundo te espera, e vem a lembrança súbita dessa massa entranhada, cheia de nós que te embaraçam entre os dedos, que carrega o fio solitário em si da sua vida que continua de ontem, passadas seis horas... Assim impiedosa e diariamente corta-se o cordão que te protege no fundo do ventre da mãe-lua, que é feminina e multifacetária, e te carrega nos braços fortes o sol, que é masculino e pai tirano. O dia começa.

terça-feira, 20 de abril de 2010

A senhorinha

Era uma senhora bem ativa, daquelas que andam com os pezinhos apressados pela casa, da sala para a cozinha, da cozinha para o quarto, do quarto para a sacada. Cuidava da sua casinha com dedicação. Isso sabia desde menina. Tinha a sabedoria de que uma casa bem cuidada quase que ganhava vida própria no ritmo de sua protetora. Um pouquinho aqui, um pouquinho ali. Era como cuidar de planta. Tem que regar na medida certa, mas o que mais importa é a atenção dedicada.
Sua essência estava em todos os cantos, assim como as plantas. A florzinha no beiral da porta, a avenca no canto da janela, a samambaia na entrada da sala, tudo parece dizer "sou parte de". Era parte dela.
Em outros tempos, a casa já tinha sido mais cheia. A senhora lembrava com uma saudade agudinha no peito de quando havia aquela bateção de pé nos cômodos. Gritaria nos corredores. Os pequenos não deixavam nada no lugar, mas o movimento também fazia parte. Era ele que fazia a cozinha mais acolhedora. O cheirinho do alimentar os outros tem um tom diferente. A cebola é mais adocicada e o óleo faz um barulhinho bom de ouvir. Cheiro de aconchego.
Hoje ela passa mais rápido pela cozinha, tem mais o que fazer. Fazer o quê? Ouve o barulho do relógio, uma geringonça antiga que espalha seu tic tac no ambiente vazio.
Na sala, um dia, ela não queria ligar a televisão. Não lhe servia, e da notícia, já sabia. E foi numa coincidência de uma tarde de verão que nos conhecemos e ela me ofereceu um pedaço macio de seu cantinho. A senhora dos pezinhos apressados sentou para passar o tempo ao meu lado. Eu queria fazer parte e a porta estava aberta. E pude sentir o cheiro bom de cebola fritando. Uhmmm... Uma dessas delicadezas do destino.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Entre os outros

Sentia-se cansada demais de estar por ali e aqui, mas a curiosidade era maior, e afinal, eram só cinco e meia da tarde. O sol era alaranjado e acolhedor. Achou melhor sair para dar uma volta e reconhecer o seu novo canto. Estava pela primeira vez longe de todas as referências e achava que se ao menos visse o entorno poderia alcançar um equilíbrio numa imagem construída.
Saiu, não sem seu lenço vermelho a tiracolo, que era marca registrada. Era bom conservar um pouco de si. Ao ver a rua estranha, respirou fundo a sensação de completo anonimato, e foi uma das coisas mais incríveis de viver.
Andava pela avenida desfilando em meio às pessoas ocupadas com suas rotinas. Passavam de um lado e de outro, o celular tocando, o ônibus para chegar, vai dar o horário do banco, daqui a pouco começa a novela... A vida do outro.
Ela não se importava. Não esperava nem perdia nada. Era livre como uma fugitiva, e de alguma forma fugia mesmo de seu dia a dia. Agora estava ali e ali ela era quem quisesse. Podia até ser ela mesma, se quisesse. Quem seria? Não tinha decidido, mas surpreendentemente não era uma forasteira. Era mais um deles, e no balançar do percurso se misturava e se perdia.
Passou por uma esquina e viu uma flor tão sua... com cheiro doce de terra úmida. Se reconheceram, assim como quando viu aquela casinha com quintal de brincar de pegar goiaba. E subir no galho mais alto. A filha gritando para a mãe na sacada. “Depois deixa a chave na caixa de correio!” Que provinciano. Tão longe e tão seu.
Foi resgatada desse viver paralelo por alguém lhe perguntando as horas. Respondeu só pelo gosto de fazer parte e seguiu o rumo que agora sabia que tinha. Voltou para casa abastecida de ser humano. Podia dormir em paz.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Pequenos amantes

Ela esperava por ele. Sem emoção, lembrava de quando o vira pela primeira vez. Noite, música, amigos. Não, não imaginava que fosse se envolver assim. Estava tão livre de vida sozinha. Quando se conheceram, no entanto, achava que poderiam ser mais companheiros do que se mostraram capazes de ser. E a leveza do primeiro encontro logo se perdeu entre as desconfianças e as entrelinhas. E o desencontro. Nas conversas iniciais tudo fluía lógica e suavemente. E eles riam juntos, e sonhavam em se ver e concretizar o carinho expresso em códigos e letras. Só que por essas ironias do destino, pessoalmente as palavras não eram tão doces. Quando boas, eram mais quentes. As sílabas se perdiam num nó de incompreensão. Palavras duras. "Não é tão bom assim", ela dizia. "Você é quem sabe", ignorava ele suas angústias. Se afastaram então com medo dessa intimidade sofrida que doía escondida. O que se passava na cabeça dela? O que acontecia com ele? Não se sabe, nem nunca vão saber. A separação não é clara, porém, e a indefinição fez com que seus caminhos se cruzassem às vezes e eles, com as cabeças confusas e as mãos perdidas, se entregavam aos pedidos de animal humano. Não havia mais cumplicidade nem afeto. Só atração e vaidade, numa disputa de egos que a ambos feria, e nenhuma vitória justificava o abalo interior. Ela queria entender e ter o carinho dele de volta. Ele só queria ela. Mas depois de. Não esperavam mais nada um do outro. A raiva virou sons vazios e o que era cinismo virou silêncio. A ausência. Ela esperava por ele. Talvez ele não viesse. Quem sabe? O que resta é apenas a saudade do que não chegaram a viver.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

O encontro

Acordou num quarto estranho depois de um sonho intrigante sobre rompimentos e humilhações. A visão de seus pertences próximos à cama logo a despertou para a realidade de viajante. Sacudiu as lembranças oníricas, pois estava muito longe para se preocupar. Léguas, a uma distância medida no tempo. E sabia que o que a esperava era maior do que qualquer necessidade de ter alguém. Ali ela tinha um grande encontro por realizar, e ela decidira que iria virgem de espírito a fim de viver toda a intensidade das primeiras impressões. Não lera, não ouvira, nem ao menos pensara muito. O caminho era longo e ela queria viver também esse espaço, captando todos os elementos da trilha até o momento mais esperado de ver.Dispensou o carro. Seus pés precisavam (re)conhecer aquela caminhada. Sentia que seguiria para onde não sabia mas adivinhara. E saiu assim em direção ao novo e simultaneamente, e encantadoramente, familiar. Era como se tudo já estivesse dentro dela e o momento não fosse uma descoberta e sim uma integração. Integração de duas partes que se pertenciam e se reconheceriam. Pé passa outro pé. Às vezes ela parava. Porque não tinha pressa. Porque queria saborear cada pedaço de onde passava e, como um segredo de diário de menina, guardá-los dentro de si. Olhou para frente e viu que chegava a seu destino (será que dá para falar de fim?). De início não soube o que sentir, pois deixara suas expectativas caírem ao sopé da porta de casa. Se sentia mais mulher, porém, e percebia que era grande ela e o que ela vivia. Era maior que ela mesma. Era como imaginara. Não sonhara, então. Existia! Suas mãos pendiam perplexas. O que fazer diante dessa presença tão forte mas também tão sua? Estava conhecendo um espaço presente nas suas mais profundas ilusões e, no entanto, o que passava a fazer sentido era ela mesma. Ela era. Com o lugar, com a vida, com o indizível. Sorriu de leve com o constrangimento de quem vivia algo proibido, e o coração batia forte no ritmo de sua nova imagem.

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