segunda-feira, 23 de julho de 2012

Breve lusitana


Que lua clara no céu de inverno em despedida! O ar carrega a umidade do rio imenso e ameniza o frio. É quase primavera e ela se sente em sintonia com o ciclo da terra – tão mulher – e assim ela também prestes a florescer. Andando sobre os ladrilhos antigos, pelo menos os enxerga antigos e docemente familiares, ela segue rumo ao Tejo guiada pela luz branca do luar. 
Quantos séculos precisaram passar para que ela pudesse entender aquele passado decorado de bê-a-bá? Se sua história fora construída com o açoite e a larapia, descobrira então que algo restava de terno. Não havia conflito, só comunhão. Porque são acolhedores os cheiros, os sabores, e os nomes duplicados ali se tornavam um.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Um presente

Não que eu andasse atenta. Estava mesmo distraída pelo fim do dia. Andar à noite dava uma sensação de desapego das preocupações da rotina passada há poucas horas, e o paredão negro alto no horizonte combinava com o frio.
Lembro que a atividade daquela terça me provocara todos os tipo de sentimentos, do aperto no peito de angústia à gargalhada espontânea de uma piada sem hora. A rotina é meio assim, meio boa, meio ruim... no fim ela apenas é e passa.
Naquele dia eu me senti um tanto comum. A verdade é que se eu não tivesse vivido aquele dia, não faria diferença. Que triste conclusão pensar que o mundo não precisa de você. E eu preciso tanto do mundo que até dói. Quando ele não liga para mim, eu quero me refugiar no meu mundinho, que é minha casa, minha sala, minha estante. A parte dele que eu consigo dominar.
No caminho para meu esconderijo, eu passo pela rua fingindo não ligar para o mundo também. Afinal, tudo acontece independente de… mas penso isso com um bocado de descrença. Faz de conta então que eu nem sinto o que se passa à minha volta, também porque cada um tem os seus problemas, e sabe, ninguém pensou muito em mim nesse dia. Quero dar as costas para o mundo.
Ok. Eu paro. O farol fechado eu não posso ignorar, já seria displicência demais. Então o mundo não me ignora, às vezes ele age contra mesmo. Não faz muito sentido mais tudo isso. Eu só queria fugir e a noite poderia me levar logo para casa. Dali algumas horas eu sabia que sentiria isso com muito mais leveza, era só deixar os passos seguirem um após o outro.
Olhava o chão para não tropeçar na confusão de pensamentos. Podia ouvir uma música para espantar esse excesso de consciência, mas não queria perder o ritmo da caminhada. Eu podia ser nada que não me importava mais. E caminhando assim, o breu na minha frente foi se desanuviando e de repente, sem pedir licença, o mundo me mostrou que eu não estava sozinha. A lua, crescente em sua fase escondida, de tímida que talvez fosse, sorriu para mim.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Sobre vida

Passos apressados pelo corredor. Há muito tempo estava atrasada para o compromisso, mas adiara. Adiara tanto que quase esquecera o porquê daquilo tudo. Só sentia a mesma irritação do início. Até a alegria dos outros a irritava. As vozes, as interferências. Os sons desconexos do ambiente lotado. A cabeça doía. Queria poder ficar em casa com seus botões e tranças. Não queria interagir tanto com o mundo, pelo menos não daquela forma. As pessoas se transformavam em seres irritantes, cheias de rotinas vãs. Viviam de olhar os outros e julgá-los pelos próprios defeitos. Um acúmulo de carências despejado em vícios e exageros. Mundo de solitários de si mesmos. Intolerância. Por isso é fácil matar. A vida vale muito pouco quando se esquece de quem se é para viver uma vida qualquer. O mundo é feio onde o homem chega. Nós destruímos, sujamos e achamos bonito coisas da moda. Ela passa e se morre ao ver a beleza criada se transformar em algo ridículo. É o mundo jogando na cara: você é um tremendo ridículo! Esqueça o que um dia amou. Amanhã não te serve mais. Cuspa no que é do outro. Ele não vale o que toca. Gaste todo o seu dinheiro. Só guarde o necessário para ter a sua casa, ali se isolar do resto insuportável e para se proteger do que te contesta. Fique no seu canto e eternize as suas manias. Cuide só dos seus. Ignore o pesar alheio. Você também não é feliz.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Minha casa

Eram seis horas da manhã, e ela nem dormira. Esperava apreensiva a hora de ir embora. Não falara com ninguém nas últimas horas, mas podia sentir a agitação que vinha dos demais. O ambiente era toda alerta. Morava na ocupação havia 62 dias, mal dera tempo de conseguir um emprego fixo. A rotina não era fácil. Dormir em colchonetes no chão, carregar baldes de água para tomar banho. Mas ela tinha um teto. A segurança contra o frio, a união contra a fome. Ali ela era com mais 1,5 mil ocupantes. O prédio imponente com seus 20 andares era o templo da dignidade de quem só tinha vivido entre paredes de madeira fina. O barraco foi embora com as últimas chuvas. Depois de se arrumar de favor nas primeiras noites, a ocupação. Seu estômago doía amargo diante da ideia do que a esperava depois da chegada da polícia. Se conseguisse dormir, ao menos poderia ter mais um sonho numa noite protegida. Pequena, sabia que enfrentar os policiais não podia, nem acompanhada. Era a regra. E a regra dizia que, doesse a quem doer, era ela quem teria que dormir na rua amanhã, e faltar ao trabalho por ter que cuidar da sua sobrevivência imediata. Turbilhão. O prédio ainda cheio, depois vazio. Ela vazia. Devia valer muito pouco, menos que uma esquadria do antigo hotel que a abrigava. Onde estaria o dono daquele esqueleto de concreto? Dormia em paz? Ela não dormira. As pessoas, seus vizinhos durante os últimos dois meses, começavam a orientar a saída. Mas ela não tinha saída. Ali era o fim da linha. O desespero imobilizava suas pernas e ela gritava silenciosamente por socorro de dentro daquele corpo que não era nada no mundo, era sem espaço. Cabeça erguida era impossível. Sentia-se massacrada como uma folha de caderno que fosse arrancada, amassada indiferentemente e jogada no chão. Andou por inércia no meio da multidão de sem-direito. Era uma massa moldada pela opressão. A luz do dia do lado de fora a cegava levemente, trazendo aos poucos a imagem da rua.


(Uma homenagem às famílias desalojadas recentemente de ocupações na cidade de São Paulo e que reivindicam nas ruas uma solução da prefeitura http://migre.me/2CcEt)

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Um dia ruim


Ela saiu de casa pisando em vazio. Era pé vazio sobre chão vazio. Nada podia se somar naquele momento por simples falta de ser. E mesmo assim, algo pesava muito. Pesava a consciência do vazio, pensou ela. Porque isso sim tem uma massa, pesada e lenta, de gosto ruim que amarra a língua. Olhou em volta de repente com medo da ideia de que notassem o seu vazio... mas as pessoas não reparam, são alheias a ele. Além de sem conteúdo, ele é sem cor. Se os outros o vissem, pensou, ela o pintaria de um vermelho bem vivo, assim ele não pareceria tão raso. Pois pior que vazio, é ser feio e triste - distraiu-se ela, divagando. Como pode tanto tempo ter construído algo sem corpo nem conteúdo? Então ela só fez foi desconstruir? Nos seus sonhos de menina, achava que desconstruir dentro dessa ordem era justamente criar algo melhor, mas... que algo tem? Falta. Uma hora jogou o vazio no chão para ver se ao menos do peso se livrava. Só que tudo se compunha de novo em um só vazio e consciência de ser. Pesada, então, ela retomou seu caminhar, e a cada passo vinha uma lágrima, como um moinho que, numa lógica às avessas, do movimento criasse a água que lhe move, e esta escorresse em finas gotas pela face.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Encanto


Encantada. Acreditava que nascera por puro encanto, e hoje, em especial, sentia que também acordara por encantamento. E o encanto dizia: Viva! Seu corpo recebia alerta toda essa energia boa que vinha do fundo da terra, de milênios, dos tempos dos que já souberam como viver. Essa energia não tinha a menor finalidade. Consumia-se no próprio ato, transformando-se apenas em alegria de viver, sem ter para quê. Mas era tão rápido que nem tempo de perguntar dava mesmo. Se foi e o dia ainda era vivo. Os olhos perplexos por ver o cinza que restava, os braços caídos. Ela sabia que seu penar era justamente, sabendo que o encanto existia, ainda assim seguir. E apesar da beleza, ela vivia, fingindo uma serena ignorância.

terça-feira, 1 de junho de 2010

A pequena forasteira

Ela vivia num mundo de gigantes. Se o primeiro ato de um ser humano ao nascer é chorar, puxando para dentro de si o ar da vida, o dela fora esquivar-se, repelindo possíveis agressões. Era sua ação mais antiga, até instintiva, apesar de não acreditar num mundo todo mal. Protegia-se por precaução daqueles seres compridos dos quais quase que só via as pernas. Cuidava-se inocentemente ao sentir a hostilidade do universo, que nem entendia. Não nascera para entender. Fora jogada no mundo. E sem exemplos que lhe guiassem, pois se perdeu da família ainda pequena, quando nem se aguentava em pé sem vacilar. Agora nem vacilar podia. Sua vida era errante dentro de um espaço que não percebia tão limitado. Dormia onde dava, comia o que lhe davam. Não conhecia o amanhã. Seus segundos eram o nunca e o para sempre. Entristecia-se com aquela dureza toda, e fugia da chuva para não ficar gelada. Forasteira. Aí percebia que os lugares quentes lhe eram proibidos, mas logo esquecia. Sonhava com espaços mornos, vermelhos como carne suculenta de açougue. Amava os gigantes, eles tinham a chave de tudo. Com seu coração de cachorro, o amor que sentia era degustativo. Ela se esbaldaria, se pudesse. Guardava a esperança, na ponta do rabinho que as vezes agitava, de que um dia alguma mão gigante pousaria levemente sobre sua cabeça. Ela daria ao carinho até sua barriguinha pulguenta, como sinal de confiança. No seu instante sem tempo, ela seria feliz. E a felicidade sem tempo é a maior do mundo.

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