segunda-feira, 26 de abril de 2010

Prelúdio

Sem avisar ele chega com seu peso de marcar até cimento seco. Um, dois, três, quatro... segue implacável e quente o relógio ditador. Abafado e quente. É pelo calor que não se consegue continuar na cama. Com o frio até se poderia ficar um pouco mais, mas não com o bafo amargo dessa rotina que chama ao som do despertador. O calor pesado te arranca sem dó para a realidade do mundo-dia-cronometrado de ritmo além do seu e das suas forças de ser... pois é quando se acorda que se decide quem se é de verdade. Antes era outra coisa, mas não que fosse mentira, pois dormindo também se vive muita coisa, mas não tem o relógio, não tem a linha do sempre seguir em frente. Você vai e volta, às vezes nunca chega, ou quem sabe já está, mas impreterivelmente, quando você precisa ser para não enlouquecer, você acorda. E se acorda ao som estridente do marca-tempo-companheiro-de-cabeceira é porque ainda não se estava preparada (ou preparado caso se considere que a generalização se dá no masculino) para o além-sonho. Não, não, não! É traumatizante ser arrancada todo dia assim dos seus delírios, que nem sempre são bons, mas são leves de leveza de sem-vir-a-ser o que seja, não importa. E cada dia ele é um, não carrega a culpa do tempo passado, essa herança surreal presente no fio fino da história, necessário para não se trocar os papéis e bagunçar tudo de vez. O calor não deixa, nem o ar, que carrega rápido o som abafado de despertar para o fundo dos ouvidos e estremece as entranhas te empurrando insuportavelmente para o chão! Pé no chão. E sente-se enfim que a massa do mundo te espera, e vem a lembrança súbita dessa massa entranhada, cheia de nós que te embaraçam entre os dedos, que carrega o fio solitário em si da sua vida que continua de ontem, passadas seis horas... Assim impiedosa e diariamente corta-se o cordão que te protege no fundo do ventre da mãe-lua, que é feminina e multifacetária, e te carrega nos braços fortes o sol, que é masculino e pai tirano. O dia começa.

terça-feira, 20 de abril de 2010

A senhorinha

Era uma senhora bem ativa, daquelas que andam com os pezinhos apressados pela casa, da sala para a cozinha, da cozinha para o quarto, do quarto para a sacada. Cuidava da sua casinha com dedicação. Isso sabia desde menina. Tinha a sabedoria de que uma casa bem cuidada quase que ganhava vida própria no ritmo de sua protetora. Um pouquinho aqui, um pouquinho ali. Era como cuidar de planta. Tem que regar na medida certa, mas o que mais importa é a atenção dedicada.
Sua essência estava em todos os cantos, assim como as plantas. A florzinha no beiral da porta, a avenca no canto da janela, a samambaia na entrada da sala, tudo parece dizer "sou parte de". Era parte dela.
Em outros tempos, a casa já tinha sido mais cheia. A senhora lembrava com uma saudade agudinha no peito de quando havia aquela bateção de pé nos cômodos. Gritaria nos corredores. Os pequenos não deixavam nada no lugar, mas o movimento também fazia parte. Era ele que fazia a cozinha mais acolhedora. O cheirinho do alimentar os outros tem um tom diferente. A cebola é mais adocicada e o óleo faz um barulhinho bom de ouvir. Cheiro de aconchego.
Hoje ela passa mais rápido pela cozinha, tem mais o que fazer. Fazer o quê? Ouve o barulho do relógio, uma geringonça antiga que espalha seu tic tac no ambiente vazio.
Na sala, um dia, ela não queria ligar a televisão. Não lhe servia, e da notícia, já sabia. E foi numa coincidência de uma tarde de verão que nos conhecemos e ela me ofereceu um pedaço macio de seu cantinho. A senhora dos pezinhos apressados sentou para passar o tempo ao meu lado. Eu queria fazer parte e a porta estava aberta. E pude sentir o cheiro bom de cebola fritando. Uhmmm... Uma dessas delicadezas do destino.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Entre os outros

Sentia-se cansada demais de estar por ali e aqui, mas a curiosidade era maior, e afinal, eram só cinco e meia da tarde. O sol era alaranjado e acolhedor. Achou melhor sair para dar uma volta e reconhecer o seu novo canto. Estava pela primeira vez longe de todas as referências e achava que se ao menos visse o entorno poderia alcançar um equilíbrio numa imagem construída.
Saiu, não sem seu lenço vermelho a tiracolo, que era marca registrada. Era bom conservar um pouco de si. Ao ver a rua estranha, respirou fundo a sensação de completo anonimato, e foi uma das coisas mais incríveis de viver.
Andava pela avenida desfilando em meio às pessoas ocupadas com suas rotinas. Passavam de um lado e de outro, o celular tocando, o ônibus para chegar, vai dar o horário do banco, daqui a pouco começa a novela... A vida do outro.
Ela não se importava. Não esperava nem perdia nada. Era livre como uma fugitiva, e de alguma forma fugia mesmo de seu dia a dia. Agora estava ali e ali ela era quem quisesse. Podia até ser ela mesma, se quisesse. Quem seria? Não tinha decidido, mas surpreendentemente não era uma forasteira. Era mais um deles, e no balançar do percurso se misturava e se perdia.
Passou por uma esquina e viu uma flor tão sua... com cheiro doce de terra úmida. Se reconheceram, assim como quando viu aquela casinha com quintal de brincar de pegar goiaba. E subir no galho mais alto. A filha gritando para a mãe na sacada. “Depois deixa a chave na caixa de correio!” Que provinciano. Tão longe e tão seu.
Foi resgatada desse viver paralelo por alguém lhe perguntando as horas. Respondeu só pelo gosto de fazer parte e seguiu o rumo que agora sabia que tinha. Voltou para casa abastecida de ser humano. Podia dormir em paz.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Pequenos amantes

Ela esperava por ele. Sem emoção, lembrava de quando o vira pela primeira vez. Noite, música, amigos. Não, não imaginava que fosse se envolver assim. Estava tão livre de vida sozinha. Quando se conheceram, no entanto, achava que poderiam ser mais companheiros do que se mostraram capazes de ser. E a leveza do primeiro encontro logo se perdeu entre as desconfianças e as entrelinhas. E o desencontro. Nas conversas iniciais tudo fluía lógica e suavemente. E eles riam juntos, e sonhavam em se ver e concretizar o carinho expresso em códigos e letras. Só que por essas ironias do destino, pessoalmente as palavras não eram tão doces. Quando boas, eram mais quentes. As sílabas se perdiam num nó de incompreensão. Palavras duras. "Não é tão bom assim", ela dizia. "Você é quem sabe", ignorava ele suas angústias. Se afastaram então com medo dessa intimidade sofrida que doía escondida. O que se passava na cabeça dela? O que acontecia com ele? Não se sabe, nem nunca vão saber. A separação não é clara, porém, e a indefinição fez com que seus caminhos se cruzassem às vezes e eles, com as cabeças confusas e as mãos perdidas, se entregavam aos pedidos de animal humano. Não havia mais cumplicidade nem afeto. Só atração e vaidade, numa disputa de egos que a ambos feria, e nenhuma vitória justificava o abalo interior. Ela queria entender e ter o carinho dele de volta. Ele só queria ela. Mas depois de. Não esperavam mais nada um do outro. A raiva virou sons vazios e o que era cinismo virou silêncio. A ausência. Ela esperava por ele. Talvez ele não viesse. Quem sabe? O que resta é apenas a saudade do que não chegaram a viver.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

O encontro

Acordou num quarto estranho depois de um sonho intrigante sobre rompimentos e humilhações. A visão de seus pertences próximos à cama logo a despertou para a realidade de viajante. Sacudiu as lembranças oníricas, pois estava muito longe para se preocupar. Léguas, a uma distância medida no tempo. E sabia que o que a esperava era maior do que qualquer necessidade de ter alguém. Ali ela tinha um grande encontro por realizar, e ela decidira que iria virgem de espírito a fim de viver toda a intensidade das primeiras impressões. Não lera, não ouvira, nem ao menos pensara muito. O caminho era longo e ela queria viver também esse espaço, captando todos os elementos da trilha até o momento mais esperado de ver.Dispensou o carro. Seus pés precisavam (re)conhecer aquela caminhada. Sentia que seguiria para onde não sabia mas adivinhara. E saiu assim em direção ao novo e simultaneamente, e encantadoramente, familiar. Era como se tudo já estivesse dentro dela e o momento não fosse uma descoberta e sim uma integração. Integração de duas partes que se pertenciam e se reconheceriam. Pé passa outro pé. Às vezes ela parava. Porque não tinha pressa. Porque queria saborear cada pedaço de onde passava e, como um segredo de diário de menina, guardá-los dentro de si. Olhou para frente e viu que chegava a seu destino (será que dá para falar de fim?). De início não soube o que sentir, pois deixara suas expectativas caírem ao sopé da porta de casa. Se sentia mais mulher, porém, e percebia que era grande ela e o que ela vivia. Era maior que ela mesma. Era como imaginara. Não sonhara, então. Existia! Suas mãos pendiam perplexas. O que fazer diante dessa presença tão forte mas também tão sua? Estava conhecendo um espaço presente nas suas mais profundas ilusões e, no entanto, o que passava a fazer sentido era ela mesma. Ela era. Com o lugar, com a vida, com o indizível. Sorriu de leve com o constrangimento de quem vivia algo proibido, e o coração batia forte no ritmo de sua nova imagem.

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