segunda-feira, 17 de maio de 2010

Caminhos

Todos os dias caminhava por aqueles mesmo espaços e ruas. Tinha horários certos para ir e para chegar, e para voltar, e para estar. Era confortável e agradável ter um rumo que ela escolhera. Apesar de que não lembrava exatamente porque escolhera. Deve ter sido porque um dia aconteceu e foi assim, até hoje. Andando nas linhas desenhadas previamente sob seus pés, um dia distraída ela de repente desconfiou que o memorado acaso poderia esconder a escolha de outro. Será que tinham escolhido por ela? De que forma? A ideia de repente a assustou. Porque se fosse ela, o que escolheria então? Seria por acaso diferente? E teria coragem de afirmar essa outra escolha? Os caminhos já estão tão simplesmente traçados que parece impossível arriscar outro jeito, ou pelo menos arriscado demais. Ela sentiu medo diante dessa provocação. Pois como poderia andar tão afirmativamente depois de ter pensado que talvez ela nem soubesse quem fosse para saber o que escolheria? E percebeu que na verdade não era sua vontade que a guiava, mas seu medo. Sim, porque se ela andava aqui, era porque tinha medo de andar por lá. Por medo um dia ela entrou correndo num prédio, parecia ridícula, mas a rua estava escura, as pessoas entenderiam. E quando a rua estava vazia, então, era pior, pois até seus fantasmas interiores a assombravam. Melhor ficar em casa, e quando saísse, atravessar na faixa de pedestres. Por precaução, era assídua consumidora de guias. O mundo é uma circunstância cruel com quem está vivo, pois só de viver você morre, e há outros à espreita para te abalar se não tiver cuidado e não souber seguir as regras. Prometera um dia que o único medo que não se permitiria sentir era o de uma criança. Essas crianças na rua, que chegam para te amedrontar como criaturas que vagam num mundo ruim paralelo. Se odiaria por isso. O que pode fazer uma criança? Mas um dia ela sentiu e não teve ódio de si mesma. A vida é assim. Por medo mesmo ela até esqueceu-se de quem era. Era arriscado demais seguir seu caminho. Mas que caminho? A cabeça doía diante da incapacidade de entender que tantos meandros tem essa vida, e agora se tornara pesado fazer o habitual. Que coisa mais chata viver na comodidade, pensou. Quase enlouquecia, porém, se pensasse muito nisso. Não imaginava quanto era perigoso andar distraída, pois num instante desses pode-se ser assolada por tais pensamentos soltos, coisa de gente doida. Ela não era doida, ela tinha um caminho. Mas hoje sabia que não era de seu eu, ainda indecifrável. Era o caminho de quem ela se condicionara a ser.

"À custa da intensidade [o burguês] consegue, pois, a subsistência e segurança; em lugar da posse de Deus cultiva a tranquilidade da consciência; em lugar do prazer, a satisfação; em lugar da liberdade, a comodidade; em lugar dos ardores mortais, uma temperatura agradável." Hermann Hesse - O Lobo da Estepe

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Redenção

Andava meio esquecida da vida, com o corpo vazio, frio, retirado de si. Seu peito frágil pouco aguentava ser de quem era, pois a função de manter o respirar mundano só resultava em suspirar sofregamente. Porque essas partes do corpo só são lembradas quando a dor vem. Senão, era como devia ser e está bom. A dor aprisionada era constante, às vezes imperceptível. Leve, assim até se podia ignorar, porém estava lá, implacável. Viver se tornara mais pesado e mais sensível com certeza, pois até a pele retraía em alerta ao mero toque de um sopro. As células pediam por essa reação dura e covarde, mesmo que fosse fuga, só importava se proteger do peso amargo e seco sem suor da dor contida. Manter-se. Mantinha-se. Levava. Mas o limiar entre a sua estabilidade e o desespero era tênue, e foi numa noite de lua escura escondida que de galope veio sem dó a constatação de que já não era mais a única na vida dele. Devia suspeitar que não fosse, mas para quê vir essa certeza eloquente e clara, que agora até cegava, pois a noite não era mais sombria, era clara como a luz forte do sol do meio-dia. A dor não vinha do peito e sim do estômago, forte e impiedosa, carregava consigo toda a angústia represada, por não caber mesmo, meu deus, como pudera guardar? De pé não podia seguir, sentou-se trêmula pedindo a mão de deus, que nem sabia quem fosse, mas era o único que permitiria vê-la tão vulnerável. Doía dentro do ventre, que estava cheio de choro para derramar, as lágrimas salgadas viriam das entranhas mesmo, como se fosse nascer um filho, aquele que ela renegara, porque se achava forte, porque não acreditava em morrer de amor. O peito estremecia com a perda do trabalho da angústia, agora que nem podia funcionar, sufocava, enjoava, e vinha um impulso forte de expulsar todo esse sentimento desumano pela garganta. Mas nem isso ela podia, não queria, decidira sofrer até o fim, até se acabar e acabar. Buscaria nas suas mais confusas sensações aquela que a libertaria desse mal. E lutara como se fosse pela vida mesmo. Destroçada pelo combate interior, ela só pedia que se fizesse a chuva, e que as flores nascessem amarelas para verdear a sala de estar, no dia seguinte da sua redenção.

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